Opinion

Resignificando o Cerrado brasileiro como um território sociobiodiverso

Published on 7 February 2023

Lídia Cabral

Rural Futures Cluster Lead

Alex Shankland

Research Fellow

Sérgio Sauer

Notícias recentes sobre crimes genocidas contra os Yanomami na Amazônia brasileira são um lembrete preocupante sobre a condição precária dos territórios de fronteira, os quais estão sujeitos a incursões predatórias com impactos sobre as pessoas e a natureza. Enquanto a atenção pública está voltada para a Amazônia, um novo IDS Bulletin revela formas de agressão material e discursiva contra as pessoas, a natureza e seus territórios no ainda mais ameaçado Cerrado brasileiro. Os artigos lançam luz sobre um território que não deve ser esquecido nos debates sobre questões ambientais e justiça agroalimentar e sustentabilidade.

Agribusiness rush in the Matopiba region, Brazil.

Embora o IDS Bulletin trace um quadro sombrio, refletindo desenvolvimentos históricos e recentes no Cerrado, há motivos para ter esperança. O recém-eleito presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, declarou seu compromisso de proteger todos os biomas e devolveu à ativista mundialmente respeitada Marina Silva o cargo de Ministra do Meio Ambiente. Ele também criou um Ministério dos Povos Indígenas, liderado por Sônia Guajajara, uma líder indígena amazônica. Essas mudanças institucionais e empoderamento de lideranças, em aliança com outras como, por exemplo, Célia Xakriabá, mulher indígena do Cerrado eleita Deputada Federal, geram esperanças e perspectivas de conservação desse bioma tão ameaçado.

Esta coleção de artigos, escritos principalmente por jovens ativistas acadêmicos no Brasil e no Reino Unido, reflete um esforço mais amplo para reivindicar o Cerrado como sociobiodiverso e reunir representações mais verdadeiras e justas desse território que reconheçam modos de vida socioculturalmente diversos e interdependentes com a biodiversidade.

Apresentando o Cerrado

O Cerrado é o segundo maior bioma ou ecorregião brasileira. Ocupa cerca de um quarto da superfície do país, estendendo-se por 2 milhões de km2. Este biome é considerado a savana mais rica do mundo em termos de biodiversidade. É também uma importante berço das águas para todo o país e um enorme repositório de carbono. Mais de 80 grupos étnicos vivem no Cerrado, tornando-o ainda um território socio-culturalmente diverso.

Embora seja menos conhecido do público internacional, que costuma associar a biodiversidade do Brasil apenas à Amazônia, o Cerrado é famoso entre cientistas agrícolas, agronegócios, exportadores de commodities e especuladores de terras como uma das maiores fronteiras agrícolas do mundo e o berço da cultura brasileira. agricultura moderna.

Uma visão problemática do Cerrado como berço da agricultural moderna

A história remonta à década de 1970, época em que o Brasil vivia sob ditadura militar e passava por um processo de industrialização que impulsionava a agricultura em escala para alimentar o crescente proletariado urbano. Visto de fora como uma terra vazia e estéril, o Cerrado se tornou o local para desencadear a Revolução Verde brasileira e perseguir o sonho da autossuficiência e, posteriormente, de alimentar o mundo.

A narrativa do “milagre do Cerrado” celebra a conversão desse território para a agricultura moderna e enfatiza o papel da ciência e da tecnologia, que permitiram que grandes agricultores alcançassem elevados níveis de produtividade e se tornassem competitivos nos mercados globais.

Mas este dito “milagre” do Cerrado teve um custo muito elevado. Os impactos ambientais do desmatamento e da agricultura intensiva, juntamente com os desiquilíbrios sociais e a violência no Cerrado, aprofundaram a desigualdade na riqueza e na distribuição da terra. Martírio, em vez de milagre, é um termo mais adequado para descrever a erosão da sociobiodiversidade do Cerrado ao longo do último meio século.

Financeirização da natureza na fronteira do Matopiba

Apesar do crescimento dos movimentos para lidar com esse terrível legado socioambiental, a história da expansão da fronteira do Cerrado não terminou. À medida que a degradação do solo e o esgotamento das bacias hidrográficas começam a impactar os rendimentos, a fronteira agrícola avança, em uma busca incansável por condições de alto rendimento. A expansão da agricultura está agora concentrada em uma região popularmente conhecida como ‘Matopiba’, que abrange as porções do Cerrado de quatro estados brasileiros. A demarcação territorial do Matopiba em 2015 buscou denominá-lo (e rebatizar o Cerrado) como uma região de “agronegócio moderno” e uma “mina de ouro do agronegócio”. Desde então, a região tem registado o mais rápido crescimento na área de terras cultivadas com soja e o aumento da concentração de terras.

O IDS Bulletin explora a evolução histórica das fronteiras agrícolas no Brasil, seus vencedores e perdedores. Em anos recentes, o agronegócio, em parceria com o capital internacional, tem criado transnacionais agropecuárias e adquirido terras no Matopiba, onde muitas vezes a especulação financeira está desvinculada da produção agroalimentar. Novos mecanismos financeiros moldam a fronteira agrícola e exercem controle sobre o território, impulsionados pelo capital transnacional. Isso reflete uma tendência global de financeirização da terra e dos sistemas agroalimentares.

Grilagem da natureza em nome da natureza

Quando Matopiba se tornou alvo de novos investimentos no início de 2010, sua atratividade decorria do fraco grau de proteção ambiental e fiscalização na região. Mas, à medida que estas se tornaram mais rigorosas, começaram a surgir formas de as contornar.

Este IDS Bulletin discute formas de “grilagem verde” (green grabbing) usando instrumentos legais ambientais. Por exemplo, o registro de terras no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (conhecido como CAR) unificou a produtividade agrícola com objetivos de proteção ambiental e abriu caminho para que os investidores se apropriassem da terra e dos serviços de ecossistemas.

A facilidade de autocertificação do CAR permite que agricultores em zonas de transição como Matopiba reclassifiquem terras amazônicas como Cerrado e, assim, desmatem uma porcentagem maior de suas propriedades, já que os dois biomas têm diferentes níveis de restrições legais ao desmatamento.

A reforma ambiental e a desregulamentação também facilitaram a grilagem de água para irrigação em larga escala pela agricultura industrial e favoreceram uma nova fase de expansão da soja no Matopiba. Ao setor agroexportador privado foi assegurado acesso quase ilimitado às águas superficiais e subterrâneas numa região que enfrenta graves problemas de escassez de água.

Apropriação e resistência

Os artigos deste IDS Bulletin detalham a apropriação discursiva e material do Cerrado, incluindo a representação desse território como paraíso do agronegócio, o uso do fogo para avançar a fronteira, o uso da regulamentação ambiental para cercar a terra e apoderar-se da natureza.

Os movimentos sociais têm denunciado e resistindo a essas incursões violentas. Suas lutas de resistência têm assumido múltiplas formas, inclusive trabalhando com pesquisadores para gerar evidências sobre a escala da violência e desafiar a narrativa sobre o Cerrado moderno. Alguns dos colaboradores deste IDS Bulletin estão profundamente envolvidos nestes esforços no campo.

Que contornos para uma agenda de pesquisa engajada?

Tal como argumentado neste IDS Bulletin, uma agenda de pesquisa que contribua para a construção de justiça e sustentabilidade no Cerrado deve:

  • continuar a desafiar, local e globalmente, a representação da região como “mina de ouro” do agronegócio moderno;
  • mobilizar apoio para organizações, redes e iniciativas locais ligadas a comunidades cujos meios de subsistência estão comprometidos e cujos direitos são persistentemente violados;
  • documentar a sociobiodiversidade do Cerrado e, assim, construir uma representação mais completa do território;
  • explorar como as desigualdades no Cerrado estão ligadas a desigualdades em outros territórios, como sugerido, por exemplo, por relatos de que práticas agrícolas que esgotam sua biodiversidade e marginalizam seu povo estão ligadas a desigualdades no acesso a alimentos em outras partes do mundo.

Pesquisas que conectem o Cerrado com o contexto mais amplo dos sistemas agroalimentares globais e das agendas de sustentabilidade podem ajudar a mobilizar um conjunto mais extenso de atores e a construir alianças entre as vítimas de injustiças no Brasil e em outros territórios – e, desse modo, contribuir para uma transição justa para um mundo mais sustentável.

Lídia Cabral, Sérgio Sauer e Alex Shankland

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The views expressed in this opinion piece are those of the author/s and do not necessarily reflect the views or policies of IDS.

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